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A história da Lelê

Em dezembro de 2019, a Dra. Grace Ferreira-Donati, ou como ela mesma prefere, a “tia” Grace, completou 20 anos de carreira, todos dedicados à intensa atividade clínica. Por essa razão, nós conversamos com a Sra, Ana Lúcia Uema de Alcântara, mãe da nossa querida Lelê, a Letícia Uema Alcântara, atendida na clínica desde 2003. É uma pequena homenagem a uma família tão querida por nós, especialmente à essa mãe dedicada e lutadora, a quem tanto admiramos!




Como foi o início das terapias da Letícia?


Comecei a perceber que ela tinha algo diferente porque ela só chorava, apontava, não entendia as coisas que a gente falava, e eu achava que ela era surda. Meu filho Giovani, com dois aninhos, já falava. A gente começou a correr, ir pra fono, mas gastava muito e não resolvia. Fui indicada a ir a um neurologista e comecei a passar em vários lugares e foi se encaminhando... O diagnóstico mesmo veio por volta de quase 5 anos. Daí, em 2003, a Letícia foi indicada a passar por fono urgentemente... Aí me indicaram a Grace, na época, e a Lê é a paciente mais antiga da Grace, né? Não lembro de ter demorado tanto, né, como agora, que tem fila de espera... Em 2003, 2004 começou a terapia... teve intervenções comportamentais, tudo o que você pode imaginar.


(...) Lembro que, na anamnese com a Grace, há 300 anos (risos), porque a Lê é bem antiguinha.... Eu perguntava “A Letícia vai falar?”. Porque na minha cabeça, quando a gente não tem entendimento, a gente acha que comunicar, falar, é isso que a gente está fazendo. Mas não é só isso. Meu sonho de consumo, à época, era a Letícia brigar comigo, xingar (risos), pedir as coisas. A Grace olhou pra mim na época e fez uma expressão: “Huuuumm....” Aí ela me explicou que comunicação não é só o diálogo que a gente está tendo. É uma expressão facial, uma expressão corporal... Hoje eu falo “meu, como eu era doida...” E eu vejo que as “fichinhas”, como a gente falava antigamente, são extremamente importantes. Tem outros recursos. Tem a alta tecnologia que pode ser usada. Hoje há vários recursos de comunicação, cada um é para uma fase, e a gente sente uma grande diferença!


E você entrou em contato com a Grace, com a clínica...como foi essa aproximação?


Lá pra 2004, 2005 ela fazia escola regular, particular de manhã, e APAE à tarde. Minha preocupação, na época, era com a socialização da Lê. Eu achava que não era importante eu saber o que a Letícia tinha, na verdade. Eu falava “A Letícia vivendo bem, está bom”. Só que a gente não tem o entendimento que tem que ter várias intervenções específicas... Hoje, ela vai fazer 21 anos, eu penso assim: vejo a diferença perto de outras pessoas, da idade dela, e hoje em dia o diagnóstico vem mais cedo.


Hoje ela está super bem. Tem os momentinhos dela, mas quem não tem? Eu procuro não rotular e graças a Deus, com o entendimento de hoje... Hoje procuro conversar com as pessoas, porque não é fácil mesmo a fase de adaptação, mas hoje ela está bem. Medicação não é 100%, nunca foi e nunca vai ser. No caso do autismo, é tudo comportamental mesmo e dizem que em menina é muito mais grave que em menino.


Quais foram as intervenções que ajudaram a Letícia? Conta um pouco dessa trajetória.


Bom, ela começou entre 2004 e 2005, lá pra outubro de 2004. A Leticia não falava nada, balbuciava, tinha movimentos estereotipados... Ela era muito sapeca. Falo sapeca por uma linguagem mais simples, né? Havia muitos problemas de comportamento. Não tinha fala, era somente som. Hoje eu penso assim, que eles são danadinhos, testam a gente o tempo todo. São muito inteligentes. Foram muitas sessões. Ela tinha mania de tirar o sapato ou de não sentar. De não ficar quieta...Na época, havia os profissionais, a Grace, no caso... quando vai atender, já está tudo certo, esquematizado, tudo certinho. Por exemplo: comunicação alternativa. Imagina, eu olhava aquilo e pensava: “meu, figurinha”. Meu marido era contra: “Imagina, a menina vai ficar andando com figurinha...”. Mas a gente não sabe, não tem entendimento. Então pra mim foi difícil, mas pra ele foi muito mais. Para os pais (homens) eu acho que é um pouco mais complicado, sabe? E às vezes, eles falam assim... o meu falava: “ah, é coisa de mãe doida”. As pessoas com autismo precisam do apoio visual. No começo, muito mais...O tamanho era maior, a imagem era mais nítida, não havia palavra, o treino era na clínica e em casa. Na escola era mais complicado, no caso, quando ela estudava na escola particular, eles não aceitavam muito. Eu nunca cobrei nada deles, eu só queria a socialização da Lê, porque ela era um menino vestido de menina. Sabe aquela coisa de mãe: “ah, eu queria uma princesa, toda enfeitadinha”... Imagina, a Lê era descabeladíssima, não falava nada, eu preocupada. Mas assim...foi todo um processo bem complicado. Foram vários treinos, vários choros. É tanta coisa na cabeça que passa um filminho... Eu notei que o apoio visual, a comunicação alternativa, foi muito bom pra ela. Antes, aqui em casa ela tinha na geladeira, no banheiro, em todo lugar que você imaginar tinha comunicação alternativa.

Ela não falava nada. Aí quando ela acostumou com isso, ela apontava o dedinho e emitia algum som. A Grace, na terapia, trabalhava a articulação, o fonema, essas coisas técnicas... Foi melhorando grandiosamente. E a Letícia é muito observadora, tem força de vontade. E eu notei que foi ficando mais tranquilo pra ela quando ela apontava as figuras. E eu falava pro meu marido: “Tá vendo? As figurinhas estão dando certo”. Então eu tive que aprender. Foram vários treinos com a Grace também. Os gastos sempre foram muito grandes e ainda são. Se a gente for por como prioridade, mas eu aprendi a fazer...tudo sob supervisão da Grace. Nada aleatório. Se a gente fosse trabalhar uma figurinha, precisaria ser a mesma na clínica, em casa, na escola. O mais difícil era na escola, porque todo mundo fala em inclusão, é moda, mas na prática a gente sabe que é difícil. Na escola ela não usa mais, no CEAPA da APAE.


Sempre fiz questão da fono porque dava muitos resultados. De quando a Letícia era antes e de como é agora, nem parece que ela passou por tudo aquilo. Foi importante a intervenção para ajudar a ficar sentada, e também como ela falava tudo emboladinho.... para ela falar, na articulação, nos fonemas... vemos o resultado.

Como você observa a parte da socialização? Como foi essa construção na vida da Letícia?


Desde que a Letícia era menorzinha, ela tinha muitos comportamentos inadequados, aquela coisa que a gente não sabia lidar também. Teve época que a gente passava os nervosinhos e aí tinha aquela recaída e voltava pra casa, indo embora dos lugares. Aí teve um período que foi muito intenso esses comportamentos e desestruturava a família de uma forma que eu pensava “Não, a gente não precisa disso”. E a gente não tinha estrutura pra suportar os olhares, o preconceito... Então teve época que a gente se afastou de tudo, até de coisas de família, de ir aos lugares. Mas conversando com a Grace e com outras terapeutas, decidimos que a gente iria voltar de pouquinho. “Vamos deixar a Letícia vivenciar isso”, eu pensei. Essa socialização, por exemplo, nós gostamos de ir ao cinema... Lá eu nunca tive problemas, porque a Letícia sempre gostou da turma do fundão. E eu levava as coisas escondidas na época. Não podia... E ela queria comer. E eu falava “Calma, vamos esperar apagar a luz, senão... alguém iria ver”. Do mesmo jeito, eu sempre fui com ela em academia, em festas. Sempre fui nos mesmos lugares para as pessoas se acostumarem com a situação, para a Letícia ter segurança, conhecer e ficar mais à vontade. Hoje eu não tenho mais problemas com isso. A não ser quando ela quer alguma coisa, ir ao shopping, por exemplo... Esses dias a gente foi numa loja do shopping, ela queria um negócio e eu falava “não, não tenho dinheiro”. Ela começou a fazer os trupés dela e foi muito engraçado. Eu dei uma de boba e sai andando. Nisso, ela saiu correndo atrás de mim gritando. O shopping parou. Todo mundo deve ter pensado “A louca com a louca, né?”. A Lê gritava “Mamãe, vem aqui....!” E eu fiz cara de paisagem. Não ignorei a Letícia, mas o comportamento dela. Desviei o comportamento dela e ela focou em outra coisa. Às vezes, na hora, eu falo algo que vai ter resultado pra negociar, sabe? Pra tirar o foco dela daquela situação.


Quanto à socialização, nesses lugares....sempre que tem uma intercorrência....Aí eu perco a paciência internamente. Respiro, faço cara de paisagem e deixo o trupé acontecer... Se alguém falar algo, acho que eu brigo, se eu não estiver num dia bom. Do contrário, tenho ignorado, faço cara de paisagem, saio e deixo ela falando sozinha, ela sai correndo atrás de mim.... E outra: as pessoas têm que acostumar também, porque afinal quem é normal hoje em dia? (risos).


E tem uma coisa: se as pessoas não vivenciarem isso, elas nunca vão saber como lidar com a situação também. A socialização dentro da escola, em casa, na clínica, é fácil. Na rua que é difícil.

Já me questionaram várias coisas: “Por que você entra no banheiro com ela?”. Ela é extremamente independente. Eu que sou precavida com certas coisas, né? Quando alguém percebe que tem alguma dificuldade, vão querer aproveitar da situação. Então prefiro me precaver.


O que você diria às mães que estão iniciando e que descobriram há pouco tempo o diagnóstico de um filho (a) com autismo? O que diria a elas?

Agora entra a parte de emoção (risos). De repente, eu até choro... Na época, eu não sabia e na minha cabeça, a fono iria resolver o meu problema. Então fui em fono em primeiro lugar, só que eu não tinha entendimento pra isso. Hoje se alguém chegasse e falasse pra mim: “olha, estou desconfiada de que meu filho tenha algo diferente...”, eu diria para levar num neurologista porque é uma equipe multidisciplinar que vai avaliar o comportamento da criança para poder diagnosticar. Não é só um profissional... É neuro junto com a fono... Se não me engano, é o médico que dá a palavra final. Em primeiro lugar, leva num médico, neurologista, neuropediatra, porque hoje se dá o diagnóstico muito mais cedo e mais rápido. Se eu analisar o tempo que perdi, foi muito tempo. O diagnóstico da Letícia veio muito tarde. Mas eu tenho a consciência tranquila porque eu comecei a correr desde os três aninhos com ela. Mas não foi nada especializado. A fono também não tinha jeito com ela...e eu não sabia. Não tinha ninguém pra me orientar. De tanto o pediatra insistir, levei em determinado neuro. Aí ele começou a me esclarecer e direcionar. Tanto que direcionou pra Grace e pra APAE. Se está desconfiada, leva num médico neurologista. É importante conversar com outras mães também porque é diferente mãe e mãe conversando... do que conversar só com profissionais, que às vezes não tem, em geral, aquele “jeitinho” para passar o diagnóstico pra pessoa. Conversar com outras pessoas que vivenciam aquilo que você também está vivendo é muito mais leve, é muito bom. Aí você vê que não é só você que está na dificuldade. Outras pessoas também passam. E essas conversas, principalmente entre as mães, dá um gás na gente, fica menos ruim, menos complicado de lidar com a situação. Porque essa fase do diagnóstico é terrível, é horrível pra gente. O dia que o médico falou, eu morri, eu morri. Acho que fui e voltei. Quais habilidades ou capacidades você desenvolveu em si mesma ao longo desses anos todos?

(começa a chorar) Depois da fase de adaptação, eu tive que correr atrás do prejuízo. Tive o Giovani, depois de 1 ano e 3 meses, fiquei grávida da Lê. Foram duas vertentes diferentes. O Giovani foi um bebê muito esperado. A Letícia veio porque eu fui teimosa (risos). Se eu pensar no dia que eu fiquei sabendo que fiquei grávida do Giovani e no dia que fiquei grávida da Lê, peço perdão pra Deus. Mas eu tinha certeza que eu estava grávida, mas não queria aceitar, porque o Giovani tinha 1 ano e 3 meses e mamava no peito. Meu sonho era ter amamentado e eu amamentei muito ele. Quando percebi a situação... E meu sonho era fazer uma faculdade. Casei, fui embora pro Japão, voltei já grávida e foram vindo os filhos e não tinha como. Com a vinda da Lê, com o diagnóstico, tive que correr atrás do prejuízo. E eu sou ligada no 220 24h. Acho que até dormindo eu faço as coisas (risos). Eu não tenho faculdade, mas tenho o sonho de fazer ainda. Só adiei. Através do autismo, consegui desenvolver várias habilidades que estavam adormecidas. Coisas que eu tinha vontade desde menina, de criança. E eu só tenho 45 anos... Como a Letícia é vaidosa, eu aprendi a fazer o cabelo dela, só não corto. Faço as coisas que deixam ela feliz e eu também gosto, fazer unha, coisa de mulher, de mãe. Aprender a lidar com as pessoas, a conversar... Eu falo que fazer diferença na vida das pessoas... é algo meu, de ajudar, de querer fazer, de querer ensinar a Lê, eu fico louca... Então com ela, eu tive que correr atrás. Desenvolvi essas habilidades.


Com isso de não trabalhar fora, pude trabalhar essa parte de mãe, de dona de casa, de aprender a fazer outras coisas pra ajudar a Lê. Se eu não fizer faculdade, eu estou realizada do mesmo jeito porque eu consigo ajudar a Lê. Já pensou se eu trabalhasse, quem iria levá-la na terapia? Também artesanato, eu sempre amei. E na época que a Lê ficou afastada da escola, por dois anos, até voltar para a APAE, se não fosse o artesanato, o trabalho manual, eu teria pirado. Foi o que me salvou. E ela começou a mostrar interesse e aprender também.

Até comecei a tocar violão, que era um sonho! Eu tô com um repertório legal até, não sou 100%, mas quando consigo tocar uma música, eu choro, choro.... É duro ser mãe vida loka (risos), mas a gente arruma um jeito!

O que você gostaria de acrescentar, Ana?

Eu diria às mães: “Não tenham medo!” É um trabalho desgastante, de formiguinha, cansativo psicologicamente. Então é bom conversar, ter a equipe certa. É um mundo maravilhoso! Quando a gente consegue entender pra poder ajudar, tudo vai ficando mais fácil. Eu descobri coisas que até então estavam bem adormecidas lá dentro... É um mundo encantador. Só quem convive sabe... a gente aprende mais com eles do que eles com a gente. Aprende muito mais! Hoje eu posso falar que me sinto realizada, tranquila.



Entrevista concedida à jornalista Natália Zen.

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